sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um pouco da história de Bárbara Paz - Campobonense


Quando estava com dezessete, mamãe faleceu. Achei que minha peça tinha acabado, mas o espetáculo acabara de começar. Coloquei tudo dentro de uma mala, caminhei sete quadras, sem maestro, sem orquestra, sozinha e silenciosa.



Saudades
Mamãe serena como sempre
Conversa comigo, desabafa sua dor
Sua tristeza tem cheiro
Faz cinco anos, parece que foi ontem
Choro como um criança
Meu coração fica apertado
Lembro-me nitidamente de seus olhos azuis transparentes
E nós duas sentadas na cama conversando
Ela desabafando, me contando seus amores, suas alegrias,
Suas tristezas,
Seus vestidos de festa, suas paixões não correspondidas
Acordar na madrugada, a insônia da dor
E eu virada para o lado fingindo estar dormindo
Escutando cada palavra dela,..chamando sua mãezinha para vir buscá-la
Sua dor foi imensa
As preocupações de deixar seus netos abandonados pela vida
E a certeza de um amanhã
Coragem de uma lutadora
Sua vida caminhava pelas filhas, pelos netos, pelo pai
Não havia mais carne, seu peso não chegava a 40 kilos
Mas suas pernas dirigiam-se todos os dias à mesa junto as filhas
Mesmo que o pão e o leite faltassem, a farinha existia
Mesmo que seu tão sonhado banquete não existisse no Natal
Na cama havia um champanhe
Nosso último vinho foi tomado
Ah, lembro-me tão bem que o vinho foi como seu sangue para mim
Não tinha mais forças para caminhar
Suas pernas estavam inutilizadas
Mas seu coração permanecia pulsante
Ela sentada na cama, eu no chão
Pediu um vinho estava com vontade
Quatro dias antes bebemos e brindamos sua partida
Foi lindo. Foi triste, inesquecível
Semana sofrida, algo estava para acontecer
Ao seu pedido não fui trabalhar pela manhã
Ajudei a trocar-se, maquiar-se, vaidosa até seu último momento
Suas palavras sufocavas
Onze e meia chegamos ao hospital
Ficou para mais um dia daqueles
Rotineira filtração de sangue
Foi mamãe com cadeiras de rodas acenando
Ela me chamava
Não fui
Dor
Queria apenas mostrar sua filha aos novos médicos
Orgulho de mãe, desobediência de filha
Ao meio dia sua alma foi filtrada deste mundo
No seu caixão
Seu rosto estava tão bem, parecia que sorria
Foi como uma estrela para um lugar indefinido
Enfim ela foi em paz, para sua mãe, para seu marido...
Deixando a saudade de uma bela mulher
Deixando sua coragem, sua alegria,
Suas histórias, suas esperanças
E eu, a cama, o colchão, as madrugadas, os sonhos
Mãe
Mãezinha
Amiga
Companheira
Minha estrada



São Paulo, cidade de grandes realizações. Cidade dos meus sonhos. Cheguei em 1992, como inseto lá do interior do Rio Grande do Sul. Inquieta como sempre. Lembro-me de estar vagando, indo de um lugar para o outro, parando às vezes os tempo suficiente para perceber que a perplexidade das outras pessoas era maior que a minha.

Comecei a fazer teatro, trabalhei como modelo, chorei muito, e assim comecei a delinear a minha história. Sozinha e insensata fui atrás de trabalho.. Fiz fotos publicitárias, editoriais de moda,desfiles e até ganhei alguns concursos .Uma nova vida ,um novo ato começara.

Depois de 6 meses que estava instalada em SP, fui para Campo Bom passar o primeiro final de ano sem minha mãe, só com minhas irmãs, meus sobrinhos e meu avô. Na noite de Natal, sofri um grave acidente que me deixou duas cicatrizes no rosto. Achei novamente que minha peça tinha terminado. Fiquei dois anos estudando, fui parar no meu subterrâneo, no caos de Dostoievski, Fernando Pessoa e todos os malditos que são amados por sua insensatez. Trabalhei na faculdade na qual cursava Jornalismo e continuei minhas aulas de teatro aos sábados. Já que meu rosto deixara de ser perfeito, acabei descobrindo dentro de mim alguma coisa que me impulsionava a cavar personas e sentimentos naquele poço imenso de emoções que habitavam minha alma. E dentro desse universo de recusa às cicatrizes, descobri uma nova Bárbara.

Aquela que não é só carne, não é só rosto e pele. Ela é como se fosse do avesso, o interno. A vida que habita dentro de mim apaga o externo, a “casca”.



Mamãe foi uma mulher invejável. Loira de olhos azuis.


Sofreu uma grave seqüela no meu parto — um rim secou — e ela ficou dezessete anos fazendo hemodiálise. Passei minha infância acompanhando-a em hospitais. O hospital era meu livro preferido, aprendi tanto que as aulas que perdia não me faziam falta. A vida não estava numa sala de aula e a morte também não estava num hospital .

Seis anos após meu nascimento papai não agüentou mais o tranco e acabou falecendo. Ficamos nós, 5 mulheres a espera de um maestro.

Mamãe reativou as forças, cuidou de mim e eu dela. Fomos amigas, colegas e parceiras do destino. Seguramos a barra e crescemos juntas.



Encontrava minha felicidade num pequeno circo que tinha na esquina da minha rua.Adorava observar a vida através dos palhaços, aquela melancolia me fascinava. Era minha leitura diária..


A escrita foi sempre aquela que acreditou em mim, que me escutou,
me executou e me calou.


Foi através dela que me descobri mulher.

Legendava em meus diários a inexplicável vida cotidiana. A incompreensão da doença, da morte e do amor. Rabiscava nas paredes, nos cadernos e nas memórias partes de uma história que aquela criança Bárbara construía com o passar dos dias.

Meu pai foi um grande político de uma pequena cidade gaúcha chamada Campo Bom, perto de Porto Alegre. No meu batizado um verdadeiro comício foi formado. A pequena loirinha de olhos verdes e sobrancelhas pretas chegara para iluminar a família Paz. Mas como as coisas nem sempre dão certo...

Fui a quarta filha a nascer. A ultima de quatro mulheres, única a nascer em hospital, todas as outras foram de parteira.


Aos nove anos comecei a trabalhar. Afinal, depois que papai faleceu voltamos a ser uma família bem humilde. Uma família feliz, mas que nem sempre tinha tudo. Minha felicidade consistia em ir para o quarto vestir roupas, me maquiar e fazer meu circo em casa mesmo e deixar o pessoal louco de tanto dar risada... Era a verdadeira palhaça... Dos meus olhos lágrimas escorriam ao ver mamãe sorrir tanto... Então aos nove comecei a pintar esculturas de gesso e as vendia na praça da minha cidade.
Mamãe não ficou muito contente, afinal eu era uma criança...

Apesar de ter minhas bonecas, meus carrinhos, minha casinha,( brincar até dizer chega) O mundo dos adultos me fascinava mais. E eu criava sempre meus shows através das histórias que ouvia. Dizia para mim mesma que era hora de refletir, descer das árvores... Afinal, eu era uma moça e não um guri. -Vá para dentro e trate de cuidar do seu futuro.”


Enfim, aos doze já estudava em escola estadual, pois nossa situação era cada vez mais difícil... As contas de casa, os medicamentos que mamãe tinha que tomar... Fui virando mulher rápido, tendo a criança nítida nos meus olhos... Nesta época as escolas estaduais entraram em greve. Então, decidi por livre e espontânea vontade fazer minha carteira de trabalho...

Fiz a carteira e arrumei emprego numa fábrica de calçados.

Cheguei em casa pulando de alegria. Queria muito poder mudar a nossa situação. Lembro que minhas pernas eram dois gambitos de tão magrinha e minhas tias me davam óleo de fígado de bacalhau para ver se eu desenvolvia . “Tadinha da Barbinha, tão magrinha.”, e tocavam fortificante em mim... Acabei trabalhando na fabrica dois meses, que foi o tempo exato das aulas voltarem... E assim não parei, estudava de manhã e trabalhava à tarde, agora em uma boutique onde fiquei por dois anos. Depois fui parar em loja de surfwear, agência de publicidade, onde comecei a fazer meus primeiros trabalhos como modelo.




Nesse trajeto minha mãe foi ficando mais fraca e eu na batalha tentando descobrir o que fazer para ajudá-la . Curá-la ? Impossível ..., então saborear os últimos dias ao seu lado tentando fazê-la mais feliz... com uma filha tão tagarela ao seu lado...
E fiz... Segui minha mãe, que era prenda de CTG (centro de tradições gaúchas).Onde tivesse música eu arrasava de tanto dançar. Sempre fui muito boa dançarina e boa de papo. Mamãe costumava dizer que eu traria o seu sorriso de volta, brilhando nos palcos da vida. Sempre soube que dentro de mim a artista existia constantemente... e que um dia eu iria para bem longe resgatar tudo... ou achar a arte de alguma forma em mim.

Acho que por isso sempre tive a certeza que o palco seria meu companheiro neste espetáculo da vida.







Descobri uma nova luz: a minha!

Maquiei minhas cicatrizes e voltei a procurar trabalho. “Dentro de cada refletor se escondem milhões de cicatrizes”. Assim não me escondi, continuei minha luta. Passei em alguns testes e fui vetada em outros. Virei um touro, uma pintura de Basquiat.

Minha obra

Pinceladas de barro cor da pele cobrem minhas cicatrizes como um carinho
Todas as manhãs antes de me iludir com a vida,
Lavo no escuro adocicado minhas pequenas pupilas
e escorrego o sabão nos cílios da pequena boneca
Cubro a alma com uma pitada de lápis nas sobrancelhas finas,
faço as ficarem bem grossas com o perfil de misteriosa...
Minhas mãos já sabem de cor a forma de cada olheira...
Profundas de tanta chuva que tomou
É como se cobrisse minha alma todas as manhãs,
É como se a mim /só eu conhecesse...
Quando estou definitivamente uma pintura de Basquiat
Olho-me no espelho e o que vejo?
Um touro, uma donzela, um inseto, uma traça, um sonho!
Não sei bem se vejo ou deliro, mas crio coragem e abro a porta.
Quase sempre venta e lacrimeja
Coloco a bagagem nas costas
E de costas me olho mais uma vez no espelho
Sim, agora estou pronta!
Mensageiros do destino me perdoem,
tenho pressa, saiam da frente!
Que meu cansaço derrete meu barro e a escultura cai
Tenho pressa...
minha vida é passageira e meu escudo de pele ???, Moldado por cicatrizes

Quando chego em casa,
sento, tiro os sapatos, calço minha essência e choro.
Quando a obra facial se desfaz,
Coloco as mãos sobre o rosto e sorrio,
Acendo uma vela, abro a torneira
E lavo minha alma,
Agora nua.


Com toda esta força não me faltaram personagens. Trabalhei com Parlapatões, Pia Fraus, Antunes Filho e outros grandes diretores da nossa geração.




Fiz algumas participações em TV, alguns testes de novela e, em outubro de 2001, fui convidada a participar do primeiro “reality show” do país: Casa dos Artistas.

Fui a vencedora e do dia para noite virei uma “pessoa pública”. Vivi no olho do furacão, um misto de vitória e contemplação. Ganhei uma grana e protagonizei uma novela. Não tinha noção de tais acontecimentos. Estar em todas as bancas de jornal, revistas e programas vespertinos não era bem o meu intuito, mas aconteceu e foi lindo. Direcionei todas esta atenção para o meu amado teatro.

Hoje, passados 13 anos, moro no centro de São Paulo, sou atriz, autora das minhas inquietações. Crio debaixo dessa mistura de raças e auto-falantes. Amo esta terra que quando cheguei abriu-me os braços feito Cristo.

São Paulo é a metrópole do progresso
Do regresso e do sucesso
Do teatro de Ainda e do Índio Guarani
Do profano e do profeta
Dos passos e compassos que constroem a orquestra do Paulista
O enredo do turista e a vida do artista
Via(tudo)do chá e do café /do concerto e do dia a pé
Do engravatado ao extraviado / das origens as embarcações
Passagens de emoções e frustrações pisam São Paulo
Agridem e acariciam nossos Gigantes sem botas e peito aberto
Caminham desesperados em busca de uma saída
De uma seta de uma meta
Pai, mãe, vó, amante, prostituta , mendigo e poeta ....
Vagam preenchidos de desejos
De selos, conselhos e relhos...
Correm em cima da terra da garoa/ derramando lagrimas e dádivas
Sem (vergonha) e sem recreio.


Bárbara

2 comentários:

Anônimo disse...

Inacreditável!!!!!!

Tereza disse...

UMA LIÇÃO DE VIDA...PARABÉNS!